sexta-feira, 11 de setembro de 2015

E não falta faz de conta?


Com esta crônica de Izaías Almada no Blog do Boi Tempo, é que mostro como me sinto! Este é o nosso país do faz de conta e infelizmente é este o nosso jogo sujo, que quer manter as coisas "no como sempre foram" (é passado mesmo!). Evoluir? Para que? O melhor é voltar para trás! O passado afinal é sempre o melhor! Viva a nossa nostalgia vira-lata. Viva o nosso sucesso anterior! E faz de conta que vamos ficar todos ótimos depois deste lindo futuro atravessado! É realmente um grande FEBEAPÁ!

O joguinho do faz de conta

Por Izaías Almada
Está difícil levar o atual momento político brasileiro a sério. Ou melhor: se levado mesmo a sério, pode ser o início de uma caminhada para a depressão psíquica, desequilíbrios emocionais, angústias, tudo na conta de mudanças, atitudes e comportamentos de homens e mulheres que – colocados em postos de comando do país – batem cabeça como se não soubessem muito bem o que estão fazendo, quer para desatar o nó ou para apertá-lo mais ainda.
Comecemos por algumas reflexões banais:
1 – Marta Suplicy saiu do PT pelos “desvios do partido” e vai para o PMDB de Cunha e outros honrados políticos sem desvios.
2 – Disse o Kant da Vila Carrão em frase originalíssima: “A corrupção no Brasil vai diminuir ou acabar quando o último corrupto do PT for enforcado com as tripas do último corrupto do PSDB.” Isto quer dizer que os outros partidos são de uma pureza invejável. Filósofos? Hummm… Seria interessante assistirem ao último filme de Woody Allen, O homem irracional.
3 – O imortal (sic) FHC, aquele que está sempre pedindo para que nós esqueçamos alguma coisa que escreveu ou que falou, por sua vez, afirmou que “nunca se roubou tanto no Brasil como agora”. Será que não há um único espelhinho no apartamento de Higienópolis?
4 – O Ministro Gilmar Dantas, digo, Mendes quer moralizar o país. Logo ele, que usa seu cargo para fazer política de compadrio e tutela. Caro leitor, o cinismo tem limites, não?
5 – O governo de São Paulo fez acordo com o PCC e não fez acordo com os professores quando estavam em greve? Choque de gestão! 220 volts…
6 – O senador Aécio Neves acha que tem a missão de liderar uma inevitável mudança na política brasileira. Pó parar repetirá o Estadão… Aquele helicóptero no Espírito Santo, hein, Luciana Genro?
7 – Já viram os pré-candidatos à prefeitura de São Paulo que querem enfrentar Haddad em 2016? Celebridades do que tem de pior na nossa televisão. São Paulo merece…
8 – “As contas de candidatos derrotados nas eleições não têm data para ser analisadas pelo TSE”, afirma jornalista da TV Globo em Brasília. Então tá: o negócio é ser candidato, pegar muita grana para a campanha e perder as eleições. Entenderam ou não? Aecim, quer dizer, assim não é considerado corrupção.
9 – Luta de classes? O que é isso? O negócio agora é moralizar as atividades entre cidadãos e entre cidadãos e Estado. Comecemos por mandar para cadeia os corruptos da esquerda, pois a corrupção antiga, onde a elite e seus representantes de direita estão metidos até o pescoço, essa não vem ao caso. Já prescreveu. E como corolário da falta de vergonha na cara ainda se alega que sonegação não é corrupção.
10 – Quem entende mesmo dessa política pós-moderna é o Lobão, o Fábio Jr., o Ronaldão, a Ana Maria Braga, o Jabor, o Ratinho, a Sheherazade, o Silas Malafaia, o filósofo da Vila Carrão, redatores da Veja e da revistaÉpoca, um tal professor Villa, todos com títulos acadêmicos de fazer inveja a FHC…
Bom, eu poderia ir com essa “brincadeira” até a centésima delas e morreríamos de rir (ou de raiva) se não fosse trágico (ou tragicômico).
A impressão que se tem, às vezes, quando tratamos da atividade política no Brasil, aquela que expressa ou escancara os mais variados interesses de grupos, grupelhos e até alguma bandidagem, é que – de fato – passamos recibo como sendo o nosso um país de energúmenos. Sempre de olho na casa do vizinho, enquanto a sujeira vai se acumulando nos cantinhos da nossa própria casa.
Acostumados ao sofrimento com a lei da chibata e do pelourinho, muitos de nossos antepassados nos legaram, ainda que não o quisessem, os das Senzalas, sobretudo, o medo e a hipocrisia como forma de defesa e sobrevivência física e intelectual. Está introjetado na sociedade brasileira.
E outros, os da Casa Grande, a turma do cinismo, já agora culturalmente ligada à necessidade de todos se mostrarem senhores e não escravos, uma espécie de antídoto da semvergonhice. Faz parte do figurino neoliberal.
Sempre nos curvamos à Europa até os primeiros anos do século XX e, após a Segunda Guerra Mundial, aos interesses do mais avassalador capitalismo e seus capitães do mato ao redor do mundo, há anos sediado nos cofres e escritórios das grandes corporações nos Estados Unidos da América e na Europa (Suiça).  E sob a proteção de um arsenal de ogivas nucleares.
A tal ponto vai essa crença e obsessão, ou submissão, que para muitos de nossos conterrâneos – os do cinismo, sobretudo, ou mesmo os papagaios de pirata –, o futuro da humanidade está em Miami, ali pertinho da Disney World, onde o estoque de bonecos do Pateta se renova em progressão geométrica.
Como país de uma democracia sempre em construção, tal como as infindáveis obras do metrô paulistano a distribuir propinas, entramos para valer no jogo do faz de conta, a ver se conseguimos acreditar um pouquinho em nós mesmos.
Faz de conta que somos sérios em nossas intenções; faz de conta que estamos combatendo a corrupção; faz de conta que a justiça é igual para todos; faz de conta que vamos fazer uma reforma política séria; faz de conta que não somos racistas; faz de conta que democracia é poder protestar livremente nas ruas e nos meios de comunicação; faz de conta que liberdade de expressão é poder trocar de canal de televisão; faz de conta que acreditamos que outro mundo seja possível; faz de conta que São Paulo ainda é a locomotiva do país; faz de conta que o Partido dos Trabalhadores é a origem de todos os nossos males; faz de conta que os três poderes são independentes e que se respeitam; faz de conta que a nossa imprensa é imparcial.
Faz de conta que não existe corrupção no futebol, nas agências de publicidade e em seus clientes; entre emissoras de TV e anunciantes; nos hospitais públicos, privados e nos planos de saúde; faz de conta que não há sonegação de impostos no país ou, se ela existe, não chega a ser propriamente uma corrupção; faz de conta que não há corrupção nos governos estaduais e municipais; faz de conta que somos um povo cordial; faz de conta que acreditamos em Deus e somos sinceramente religiosos; faz de conta que somos competentíssimos naquilo que fazemos, inclusive este que assina o artigo; faz de conta que sabemos votar; faz de conta que temos uma esquerda combativa; faz de conta que nunca molhamos a mão do guarda da esquina; faz de conta que não compramos notas fiscais; faz de conta que obedecemos a todos os sinais de trânsito; faz de conta que não temos preconceitos contra paraguaios, bolivianos, cubanos, haitianos e outros latino-americanos; faz de conta que somos todos contra a pena de morte; faz de conta que não compramos carteirinhas de estudante; faz de conta que não subimos os preços das mercadorias acima da inflação; faz de conta que conhecemos minimamente a Constituição do país, principalmente juízes de direito; faz de conta que nos importamos com a exterminação dos Guarani/Kaiowás; faz de conta que não existem os proxenetas da fé…
Faz de conta; faz de com… Faz de… Faz… F…

sábado, 7 de março de 2015

A banalidade e a boçalidade do mal que se instala na ausência do pensamento.



No meu ultimo post neste blog fiz um comentário triste do que via no Brasil em decorrência da eleição, embora tenha ganhado a eleição, relatei que infelizmente perdi o debate político para a falta de civilidade e a impotência diante de tanto ódio. Até por conta disto fiquei sem nada escrever de lá para cá, observando o meu Brasil, e a nós mesmos, nos comportando depois das eleições, e infelizmente ficando sempre triste com o nosso pobre pensamento atravessado, no qual negamos e falamos mal das diferenças conceituais existentes neste país enorme e efetivamente nos tratando de forma ao meu ver equivocado um ao outro, tornando inclusive muito difícil manter amizades se não fosse forte o suficiente de ter a capacidade de perdoar o que foi dito e escrito por parentes, colegas e amigos e até entendendo que é de boa fé no final das contas.
Vejo agora esta crítica de Eliane Brum publicada no El país que merece uma atenção especial. O importante é que este texto dela mostra a necessidade de todos nós tentarmos nos reconhecer e procurar entender estas diferenças e tentar é claro mudar um pouco o nosso comportamento. O ódio afinal de contas não constrói nada e as diferenças, estas sim, sempre montaram o futuro. Portanto concordo com o texto em gênero número e grau!

A boçalidade do mal
Em 19 de fevereiro, Guido Mantega, ex-ministro da Fazenda dos governos de Lula e de Dilma Rousseff, estava na lanchonete do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, quando foi hostilizado por uma mulher, com o apoio de outras pessoas ao redor. Os gritos: “Vá pro SUS!”. Entre eles, “safado” e “fdp”. Mantega era acompanhado por sua esposa, Eliane Berger, psicanalista. Ela faz um longo tratamento contra o câncer no hospital, mas o casal estava ali para visitar um amigo. O episódio se tornou público na semana passada, quando um vídeo mostrando a cena foi divulgado no YouTube.
Entre as várias questões importantes sobre o momento atual do Brasil – mas não só do Brasil – que o episódio suscita, esta me parece particularmente interessante:
“Que passo é esse que se dá entre a discordância com relação à política econômica e a impossibilidade de sustentar o lugar do outro no espaço público?”.
A pergunta consta de uma carta escrita pelo Movimento Psicanálise, Autismo e Saúde Pública (MPASP), que encontrou na cena vivida por Guido e Eliane ecos do período que antecedeu a Segunda Guerra, na Alemanha nazista, quando se iniciou a construção de um clima de intolerância contra judeus, assim como contra ciganos, homossexuais e pessoas com deficiências mentais e/ou físicas. O desfecho todos conhecem. Em apoio a Guido e Eliane, mas também pela valorização do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende milhões de brasileiros, o MPASP lançou a hashtag #VamosTodosProSUS.
Pode-se aqui fazer a ressalva de que a discordância vai muito além da política econômica e que o ex-ministro petista encarnaria na lanchonete de um dos hospitais privados mais caros do país algo bem mais complexo. Mas a pergunta olha para um ponto preciso do cotidiano atual do Brasil: em que momento a opinião ou a ação ou as escolhas do outro, da qual divergimos, se transforma numa impossibilidade de suportar que o outro exista? E, assim, é preciso eliminá-lo, seja expulsando-o do lugar, como no caso de Guido e Eliane, seja eliminando sua própria existência – simbólica, como em alguns projetos de lei que tramitam no Congresso, visando suprimir direitos fundamentais dos povos indígenas ou de outras minorias; física, como nos crimes de assassinato por homofobia ou preconceito racial.
O que significa, afinal, esse passo a mais, o limite ultrapassado, que tem sido chamado de “espiral de ódio” ou “espiral de intolerância”, num país supostamente dividido (e o supostamente aqui não é um penduricalho)? De que matéria é feita essa fronteira rompida?
A descoberta de que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades no elevador defende o linchamento de homossexuais tem um impacto profundo
A resposta admite muitos ângulos. Na minha hipótese, entre tantas possíveis, peço uma espécie de licença poética à filósofa Hannah Arendt, para brincar com o conceito complexo que ela tão brilhantemente criou e chamar esse passo a mais de “a boçalidade do mal”. Não banalidade, mas boçalidade mesmo. Arendt, para quem não lembra, alcançou “a banalidade do mal” ao testemunhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, e perceber que ele não era um monstro com um cérebro deformado, nem demonstrava um ódio pessoal e profundo pelos judeus, nem tampouco se dilacerava em questões de bem e de mal. Eichmann era um homem decepcionantemente comezinho que acreditava apenas ter seguido as regras do Estado e obedecido à lei vigente ao desempenhar seu papel no assassinato de milhões de seres humanos. Eichmann seria só mais um burocrata cumprindo ordens que não lhe ocorreu questionar. A banalidade do mal se instala na ausência do pensamento.
A boçalidade do mal, uma das explicações possíveis para o atual momento, é um fenômeno gerado pela experiência da internet. Ou pelo menos ligado a ela. Desde que as redes sociais abriram a possibilidade de que cada um expressasse livremente, digamos, o seu “eu mais profundo”, a sua “verdade mais intrínseca”, descobrimos a extensão da cloaca humana. Quebrou-se ali um pilar fundamental da convivência, um que Nelson Rodrigues alertava em uma de suas frases mais agudas: “Se cada um soubesse o que o outro faz dentro de quatro paredes, ninguém se cumprimentava”. O que se passou foi que descobrimos não apenas o que cada um faz entre quatro paredes, mas também o que acontece entre as duas orelhas de cada um. Descobrimos o que cada um de fato pensa sem nenhuma mediação ou freio. E descobrimos que a barbárie íntima e cotidiana sempre esteve lá, aqui, para além do que poderíamos supor, em dimensões da realidade que só a ficção tinha dado conta até então.
Descobrimos, por exemplo, que aquele vizinho simpático com quem trocávamos amenidades bem educadas no elevador defende o linchamento de homossexuais. E que mesmo os mais comedidos são capazes de exercer sua crueldade e travesti-la de liberdade de expressão. Nas postagens e comentários das redes sociais, seus autores deixam claro o orgulho do seu ódio e muitas vezes também da sua ignorância. Com frequência reivindicam uma condição de “cidadãos de bem” como justificativa para cometer todo o tipo de maldade, assim como para exercer com desenvoltura seu racismo, sua coleção de preconceitos e sua abissal intolerância com qualquer diferença.
Foi como um encanto às avessas – ou um desencanto. A imagem devolvida por esse espelho é obscena para além da imaginação. Ao libertar o indivíduo de suas amarras sociais, o que apareceu era muito pior do que a mais pessimista investigação da alma humana. Como qualquer um que acompanha comentários em sites e postagens nas redes sociais sabe bem, é aterrador o que as pessoas são capazes de dizer para um outro, e, ao fazê-lo, é ainda mais aterrador o que dizem de si. Como o Eichmann de Hannah Arendt, nenhum desses tantos é um tipo de monstro, o que facilitaria tudo, mas apenas ordinariamente humano.
Ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras, a internet arrancou da humanidade a ilusão sobre si mesma
Ainda temos muito a investigar sobre como a internet, uma das poucas coisas que de fato merecem ser chamadas de revolucionárias, transformaram a nossa vida e o nosso modo de pensar e a forma como nos enxergamos. Mas acho que é subestimado o efeito daquilo que a internet arrancou da humanidade ao permitir que cada indivíduo se mostrasse sem máscaras: a ilusão sobre si mesma. Essa ilusão era cara, e cumpria uma função – ou muitas – tanto na expressão individual quanto na coletiva. Acho que aí se escavou um buraco bem fundo, ainda por ser melhor desvendado.
Como aprendi na experiência de escrever na internet que não custa repetir o óbvio, de forma nenhuma estou dizendo que a internet, um sonho tão estupendo que jamais fomos capazes de sonhá-lo, é algo nocivo em si. A mesma possibilidade de se mostrar, que nos revelou o ódio, gerou também experiências maravilhosas, inclusive de negação do ódio. Assim como permitiu que pessoas pudessem descobrir na rede que suas fantasias sexuais não eram perversas nem condenadas ao exílio, mas passíveis de serem compartilhadas com outros adultos que também as têm. Do mesmo modo, a internet ampliou a denúncia de atrocidades e a transformação de realidades injustas, tanto quanto tornou o embate no campo da política muito mais democrático.
Meu objetivo aqui é chamar a atenção para um aspecto que me parece muito profundo e definidor de nossas relações atuais. A sociedade brasileira, assim como outras, mas da sua forma particular, sempre foi atravessada pela violência. Fundada na eliminação do outro, primeiro dos povos indígenas, depois dos negros escravizados, sua base foi o esvaziamento do diferente como pessoa, e seus ecos continuam fortes. A internet trouxe um novo elemento a esse contexto. Quero entender como indivíduos se apropriaram de suas possibilidades para exercer seu ódio – e como essa experiência alterou nosso cotidiano para muito além da rede.
Finalmente era possível “dizer tudo”, e isso passou a ser confundido com autenticidade e liberdade
É difícil saber qual foi a primeira baixa. Mas talvez tenha sido a do pudor. Primeiro, porque cada um que passou a expressar em público ideias que até então eram confinadas dentro de casa ou mesmo dentro de si, descobriu, para seu júbilo, que havia vários outros que pensavam do mesmo jeito. Mesmo que esse pensamento fosse incitação ao crime, discriminação racial, homofobia, defesa do linchamento. Que chamar uma mulher de “vagabunda” ou um negro de “macaco”, defender o “assassinato em massa de gays”, “exterminar esse bando de índios que só atrapalham” ou “acabar com a raça desses nordestinos safados” não só era possível, como rendia público e aplausos. Pensamentos que antes rastejavam pelas sombras passaram a ganhar o palco e a amealhar seguidores. E aqueles que antes não ousavam proclamar seu ódio cara a cara, sentiram-se fortalecidos ao descobrirem-se legião. Finalmente era possível “dizer tudo”. E dizer tudo passou a ser confundido com autenticidade e com liberdade.
Para muitos, havia e há a expectativa de que o conhecimento transmitido pela oralidade, caso de vários povos tradicionais e de várias camadas da população brasileira com riquíssima produção oral, tenha o mesmo reconhecimento na construção da memória que os documentos escritos. Na experiência da internet, aconteceu um fenômeno inverso: a escrita, que até então era uma expressão na qual se pesava mais cada palavra, por acreditar-se mais permanente, ganhou uma ligeireza que historicamente esteve ligada à palavra falada nas camadas letradas da população. As implicações são muitas, algumas bem interessantes, como a apropriação da escrita por segmentos que antes não se sentiam à vontade com ela. Outras mostram as distorções apontadas aqui, assim como a inconsciência de que cada um está construindo a sua memória: na internet, a possibilidade de apagar os posts é uma ilusão, já que quase sempre eles já foram copiados e replicados por outros, levando à impossibilidade do esquecimento.
O fenômeno ajuda a explicar, entre tantos episódios, a resposta de Washington Quaquá, prefeito de Maricá e presidente do PT fluminense, uma figura com responsabilidade pública, além de pessoal, às agressões contra Guido Mantega. Em seu perfil no Facebook, ele sentiu-se livre para expressar sua indignação contra o que aconteceu na lanchonete do Einstein nos seguintes termos: “Contra o fascismo a porrada. Não podemos engolir esses fascistas burguesinhos de merda! (…) Vamos pagar com a mesma moeda: agrediu, devolvemos dando porrada!”.
O outro, se não for um clone, só existe como inimigo
O ódio, e também a ignorância, ao serem compartilhados no espaço público das redes, deixaram de ser algo a ser reprimido e trabalhado, no primeiro caso, e ocultado e superado, no segundo, para ser ostentado. E quando me refiro à ignorância, me refiro também a declarações de não saber e de não querer saber e de achar que não precisa saber. Me arrisco a dizer que havia mais chances quando as pessoas tinham pudor, em vez de orgulho, de declarar que acham museus uma chatice ou que não leram o texto que acabaram de desancar, porque pelo menos poderia haver uma possibilidade de se arriscar a uma obra de arte que as tocasse ou a descobrir num texto algo que provocasse nelas um pensamento novo.
Sempre se culpa o anonimato permitido pela rede pelas brutalidades ali cometidas. É verdade que o anonimato é uma realidade, que há os “fakes” (perfis falsos) e há toda uma manipulação para falsificar reações negativas a determinados textos e opiniões, seja por grupos organizados, seja como tarefa de equipes de gerenciamento de crise de clientes públicos e privados. Tanto quanto há campanhas de desqualificação fabricadas como “espontâneas”, nas quais mentiras ou boatos são disseminados como verdades comprovadas, causando enormes estragos em vidas e causas.
Mas suspeito que, no que se refere ao indivíduo, a notícia – boa ou má – é que o anonimato foi em grande medida um primeiro estágio superado. Uma espécie de ensaio para ver o que acontece, antes de se arriscar com o próprio RG. Não tenho pesquisa, só observação cotidiana. Testemunho dia a dia o quanto gente com nome e sobrenome reais é capaz de difundir ódio, ofensas, boatos, preconceitos, discriminação e incitação ao crime sem nenhum pudor ou cuidado com o efeito de suas palavras na destruição da reputação e da vida de pessoas também reais. A preocupação de magoar ou entristecer alguém, então, essa nem é levada em conta. Ao contrário, o cuidado que aparece é o de garantir que a pessoa atacada leia o que se escreveu sobre ela, o cuidado que se toma é o da certeza de ferir o outro. O outro, se não for um clone, só existe como inimigo.
Na eleição de 2014, descobriu-se que os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização
O problema, quando se aponta os “bárbaros”, e aqui me incluo, é justamente que os bárbaros são sempre os outros. Neste sentido, a eleição de 2014, da qual derivou a tese, para mim bastante questionável, do “Brasil partido”, bagunçou um bocado essa crença. Não foi à toa que amizades antigas se desfizeram, parentes brigaram e até amores foram abalados, que até hoje há gente que se gostava que não voltou a se falar. As redes sociais, a internet, viraram um campo de guerra, num nível maior do que em qualquer outra eleição ou momento histórico. Só que, desta vez, os bárbaros eram até ontem os aliados na empreitada da civilização.
Descobriu-se então que pessoas com quem se compartilhou sonhos ou pessoas que se considerava éticas – pessoas do “lado certo” – eram capazes de lançar argumentos desonestos – e que sabiam ser desonestos – e até mentiras descaradas, assim como de torturar números e manipular conceitos. Eram capazes de fazer tudo o que sempre condenaram, em nome do objetivo supostamente maior de ganhar a eleição. Os bárbaros não eram mais os outros, os de longe. Desta vez, eram os de perto, bem de perto, que queriam não apenas vencer, mas destruir o diferente ou o divergente, eu ou você. O bárbaro era um igual, o que torna tudo mais complicado.
Não se sai imune desse confronto com a realidade do outro, a parte mais fácil. Não se sai impune desse confronto com a realidade de si, este um enfrentamento só levado adiante pelos que têm coragem. Como sabemos, enquanto for possível e talvez mesmo quando não seja mais, cada um fará de tudo para não se enxergar como bárbaro, mesmo que para isso precise mentir para si mesmo. É duro reconhecer os próprios crimes, assim como as traições, mesmo as bem pequenas, e as vilanias. Mas, no fundo, cada um sabe o que fez e os limites que ultrapassou. O que aconteceu na eleição de 2014 é que os bons e os limpinhos descobriram algumas nuances a mais de sua condição humana, e descobriram o pior: também eles (nós?) não são capazes de respeitar a opinião e a escolha diferente da sua. Também eles (nós?) não quiseram debater, mas destruir. De repente, só havia “haters” (odiadores). De novo: desse confronto não se sai impune. A boçalidade do mal ganhou dimensões imprevistas.
A experiência poderosa de se mostrar sem recalques transcendeu e influenciou a vida para além das redes
Seria improvável que a experiência vivida na internet, na qual o que aconteceu nas eleições foi apenas o momento de maior desvendamento, não mudasse o comportamento quando se está cara a cara com o outro, quando se está em carne e osso e ódio diante do outro, nos espaços concretos do cotidiano. Seria no mínimo estranho que a experiência poderosa de se manifestar sem freios, de se mostrar “por inteiro”, de eliminar qualquer recalque individual ou trava social e de “dizer tudo” – e assim ser “autêntico”, “livre” e “verdadeiro” – não influenciasse a vida para além da rede. Seria impossível que, sob determinadas condições e circunstâncias, os comportamentos não se misturassem. Seria inevitável que essa “autorização” para “dizer tudo” não alterasse os que dela se apropriaram e se expandisse para outras realidades da vida. E a legitimidade ganhada lá não se transferisse para outros campos. Seria pouco lógico acreditar que a facilidade do “deletar” e do “bloquear” da internet, um dedo leve e só aparentemente indolor sobre uma tecla, não transcendesse de alguma forma. Não se trata, afinal, de dois mundos, mas do mesmo mundo – e do mesmo indivíduo.
A mulher que se sentiu “no direito” de xingar Guido Mantega e por extensão Eliane Berger, e tornar sua presença na lanchonete do hospital insuportável, assim como as pessoas que se sentiram “no direito” de aumentar o coro de xingamentos, possivelmente acreditem que estavam apenas exercendo a liberdade de expressão como “cidadãos de bem indignados com o PT”, uma frase corriqueira nos dias de hoje, quase uma bandeira. Ao mandar Guido e Eliane para outro lugar – e não para qualquer lugar, mas “pro SUS” – devem acreditar que o Sistema Único de Saúde é a versão contemporânea do inferno, para a qual só devem ir os proscritos do mundo. Possivelmente acreditem também que o espaço do Hospital Israelita Albert Einstein deve continuar reservado para uma gente “diferenciada”. Em nenhum momento parecem ter enxergado Guido e Eliane como pessoas, nem se lembrado de que quem está num hospital, seja por si mesmo, seja por alguém que ama, está numa situação de fragilidade semelhante a deles. O direito ao ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência assustadora.
O direito ao ódio e à eliminação do outro mostrou-se soberano: aquele que é diferente de mim, eu mato. Ou deleto. Simbolicamente, no geral; fisicamente, com frequência assustadora.
Mas, claro, nada disso é importante. Nem é importante a greve dos caminhoneiros ou a falta de água na casa dos mais pobres. Tampouco a destruição de estátuas milenares pelo Estado Islâmico. Essencial mesmo é o grande debate da semana que passou: descobrir se o vestido era branco e dourado – ou preto e azul. Até mesmo sobre tal irrelevância, a selvageria do bate-boca nas redes mostrou que não é possível ter opinião diferente.
Já demos um passo além da banalidade. Nosso tempo é o da boçalidade.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da RuaA Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebrum.
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